Praticar uma gratidão sustentada | Exercícios de Atenção, 11

Para fazer uma torta de maçã do zero é preciso antes criar o universo.

Em uma sociedade autocentrada e individualista como a nossa, somos criadas para viver sempre imersas em nossos ó-tão-absorventes egos. (Falo sobre isso na Prisão Eu.)

Mas nossa ânsia por autossuficiência é uma prisão: estamos todas interconectadas de tal maneira que qualquer desejo de autossuficiência é tão ilusório quanto nosso desejo por uma segurança também ilusória e impossível.

De maneira bem real e concreta, nossa vida está nas mãos de incontáveis pessoas, muitas das quais mortas há séculos: um pedreiro diligente em seu trabalho no século retrasado nos protege até hoje de um prédio que, sem isso, desabaria sobre nossas cabeças.

O 11º Exercício de Atenção propõe um possível antídoto ao nosso egocentrismo: cultivar uma postura de gratidão permanente, tentando sempre lembrar nossas enormes dívidas com essas tantas milhares de pessoas que jamais conheceremos.

(Esse é o 11º Exercício de Atenção. Leia também o 1º texto da série, onde contextualizo os exercícios.)

* * *

No meu templo, antes das refeições, fazemos uma pequena ação de graças:

"Terra, fogo, água, ar, espaço se combinam para que se tornem esse alimento. Inúmeros seres deram suas vidas e trabalhos para que possamos comer. Que estejamos nutridos para nutrir a vida."

Na primeira refeição do meu encontro “As Prisões(onde praticamos quase todos os Exercícios de Atenção), proponho essa seguinte variante:

Escolho algum alimento que esteja na mesa e proponho que todas nós tentemos agradecer mentalmente a todas as pessoas responsáveis por ele estar ali.

Por exemplo, algo tão simples e tão banal como arroz.

Originalmente, o arroz era uma planta selvagem — como todas as plantas que consumimos.

Para que esse arroz esteja hoje em nossa mesa, foi preciso que um número incontável de seres humanos, vivendo em condições precárias impensáveis para nós, ao longo de milhares e milhares de anos atrás, depois de muita tentativa e erro, depois de muitos terem morrido envenenados ou esfaimados, tenham descoberto que aqueles grãozinhos selvagens eram comestíveis.

Então, ao longo de mais alguns milênios, outros milhares de seres humanos foram comendo e selecionando, preparando e moendo, beneficiando e cozinhando aqueles grãos selvagens e, nesse processo, descobrindo novas e diferentes maneiras de consumi-los.

(Pensem assim: tem uma planta que o legal é jogar água quente sobre as folhas e beber, já tem outra que o legal é moer os grãos, passar a água quente pelos grãos moídos e, então, beber. Como sabemos disso? Como criamos isso? Milênios de tentativa e erro.)

Mais tarde, para evitar o trabalho de ter que procurar pelo meio do mato esses grãos de arroz selvagem e para garantir uma fonte mais segura de comida, algumas pessoas começaram a plantá-los e, nesse processo de escolher alguns grãos e descartar outros, foram domesticando a planta, ou seja, manipulando-a geneticamente até que ficasse mais ao seu gosto.

(Esse processo aconteceu há quinze mil anos, na China, mas ninguém precisa conhecer local e data para saber que esse processo inevitavelmente aconteceu, com o arroz e com todas as plantas que comemos, executado por milhares de pessoas anônimas a quem devemos literalmente tudo, pois sem isso não estaríamos vivas.)

Incontáveis pessoas na China se dedicaram ao cultivo e processamento, transporte e cozimento do arroz, tornando-o a comida mais popular daquela cultura.

Devemos gratidão a todas essas pessoas: sem elas, não existiria arroz. Mas nada disso teria feito o arroz chegar à nossa mesa, aqui no Brasil.

Ao longo dos milênios seguintes, a medida em que vários visitantes à China se apaixonavam pelo arroz e o traziam para seus países, o grão veio lentamente viajando em direção oeste, tornando-se mais popular em algumas regiões, menos em outras.

Um povo que gostou especialmente do arroz foram as pessoas árabes do Oriente Médio. Mais tarde, quando se espalharam pelo Norte da África e, de lá, invadiram a Península Ibérica, foi sempre com a bucho cheio de arroz.

Oitocentos anos depois, ao serem expulsos da Península Ibérica, deixaram para trás o gosto pelo arroz. Quando as pessoas espanholas e portuguesas chegaram nas Américas, elas eram (graças à influência árabe) os dois povos europeus que mais consumiam arroz.

Toda essa História eu descobri agora, em uma rápida pesquisa na internet, mas ninguém precisa saber nenhum desses fatos para intuir a multidão de pessoas que, quilômetro a quilômetro, ano a ano, ao longo de muitos milênios, trouxe esse grãozinho do vale do Yangtzé até as margens da baía de Guanabara.

Mas não devemos gratidão somente a elas: para que esses grãos específicos de arroz estejam aqui, concretamente, fisicamente, à nossa mesa, também dependemos de várias das nossas compatriotas e contemporâneas.

Pois esses grãos tiveram que ser adubados e regados, plantados e colhidos, segurados e contabilizados, ensacados e vendidos, embalados e transportados. Quantas pessoas, tão únicas e inteligentes quanto nós, dedicaram seus melhores esforços profissionais, seu cuidado e sua energia, para garantir que esse arroz chegasse comestível à nossa mesa?

Incrivelmente, porém, mesmo se formos gratas a todas essas pessoas, um número incontável de pessoas se espalhando pelos milênios!, ainda assim estaremos sendo ingratas.

Para que esses grãos específicos de arroz estejam aqui, agora, em nossa mesa, não dependemos apenas das pessoas que trabalharam diretamente com eles, mas também:

— Das pessoas que mantém as estradas por onde passaram e que operam a hidrelétrica que gerou a energia utilizada em todo esse processo;

— Das funcionárias públicas que fazem a fiscalização sanitária e das que recolhem os impostos para a manutenção dessas estradas e hidrelétricas;

— Das pessoas que desenharam e produziram, transportaram e venderam as roupas e os calçados dessa multidão;

— E até mesmo das diretoras de cinema e das autoras de novelas, das poetisas e das atrizes, de todas as artistas que ajudaram essas pessoas (e todas nós) a dar sentido a suas vidas e à habitar outras subjetividades, pois, sem isso, de nada adiantaria arroz na mesa.

Carl Sagan disse que para fazer uma torta de maçã do zero é preciso antes criar o universo.

Do mesmo jeito, para comermos uma simples tigela de arroz é preciso antes mobilizar em mutirão toda a humanidade.

Na prática, essa simples tigela de arroz é a culminação de toda a fascinante aventura humana na terra. A quem não seríamos gratas?

Então, só então, começamos a comer.

Na próxima refeição, será a vez do garfo ou da água, da couve ou do guardanapo.

* * *

No longínquo palácio celestial do deus Indra (diz a parábola budista), está pendurada no teto uma teia que se estende até o infinito, em todas as direções.

Em cada nó da teia, existe uma joia reluzente.

Como a teia é infinita, também são infinitas as joias, brilhando como estrelas.

Na superfície reluzente de qualquer uma dessas joias estão refletidas todas as outras infinitas joias da teia infinita, em um processo infinito de reflexão mútua.

Cada joia contém em si o reflexo de todas as outras.

Cada joia condiciona e é condicionada por todas as outras.

Cada joia é todas as outras.

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Exercícios de Atenção, a série completa

1. Praticar um olhar generoso

2. Dar-se conta das pessoas

3. Ver na sua totalidade

4. Ouvir com atenção plena

5. Cultivar o não-conhecimento

6. Exercer a não-opinião

7. Não ser a constante

8. Colocar-se em outra pessoa

9. Escolher agir com cuidado

10. Visualizar o privilégio

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Mudança de nome: de Empatia para Atenção

A série Exercícios de Empatia passou a se chamar Exercícios de Atenção.

Outro nome possível teria sido Exercícios de Cuidado, pois o grande objetivo da série é estimular nas pessoas leitoras um maior cuidado umas com as outras. Entretanto, nem todos os exercícios se referem diretamente ao Cuidado. Além disso, a Atenção é um pré-requisito necessário ao Cuidado: sem Atenção não há Cuidado.

Por isso, Exercícios de Atenção é um nome que reflete melhor o espírito da série.

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Os encontros "As Prisões"

São instalações artísticas, polifônicas e interativas, improvisadas e colaborativas, onde praticamos escutatória e atenção, generosidade e cuidado, e exploramos os limites e possibilidades da comunicação cotidiana: o que falamos?, como falamos?, por que falamos?

O nome vem de uma série de textos que estou escrevendo desde 2002, tentando mapear todas as Prisões cognitivas que acorrentam nosso pensamento: Verdade, Dinheiro, Trabalho, Privilégio, Monogamia, Religião, Obediência, Sucesso, Conhecimento, Felicidade, Autossuficiência,  Patriotismo, e a maior de todas, Eu.

Os encontros, realizados por todo o Brasil desde 2013, reúnem de dez a trinta pessoas, duram de um a cinco dias e são sempre diferentes, imprevisíveis, únicos.

Neles, enquanto discutíamos "As Prisões", os Exercícios de Atenção foram criados, gestados, aperfeiçoados, em um processo colaborativo com as pessoas participantes. Hoje, os encontros servem para praticarmos esses exercícios e para inventarmos juntas os próximos, em um processo que só poderia acontecer presencialmente, olho no olho e lágrima no suor.

Ninguém é obrigada a falar: toda fala é voluntária.

Ninguém é obrigada a pagar: todo pagamento é voluntário.

Para saber quando serão os próximos, visite minha página de eventos.

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publicado em 11 de Junho de 2017, 01:00
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Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha vídeo-biografia, me siga no facebook, assine minha newsletter.


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