“FALA QUE NEM HOMEM” Mas o que é falar “que nem homem”?

Homens tímidos, com voz baixa, fina ou menos imponente, menos mandona e autoritária… Nem a voz escapa das diversas cobranças para sermos considerados “homens de verdade”.

Nós homens recebemos muitas ordens, desde a infância, para sermos vistos como “homens de verdade”:

“Senta que nem homem!”, “Anda que nem homem!”, “Se vista que nem homem!”, “Faça que nem homem!” 

E temos também uma outra ordem que não pode ser esquecida: 

“FALA QUE NEM HOMEM!”

Falar com voz fina ou ser gay: alguma dessas coisas te faz menos homem?

Esse é um ponto interessante pra gente pensar, né?! E se esse homem de voz mais fina for mesmo gay? Acho que com essa pergunta simples a gente começa a encontrar o que está escondido por trás dessa cobrança. Há ali um dedinho de homofobia. Os homens gays tendem a não serem vistos como “homens de verdade” e por isso toda essa cobrança em torno do homem para que cada elemento do seu corpo grite que ele é HOMÃO, MACHO, MACHO ALFA.

Definitivamente essa cobrança por uma masculinidade evidente, que salta aos olhos, aquela que todo mundo olha e diz “É homem!”, está por todos os cantos. Eu sou um homem gay, moro em Mandirituba, região metropolitana de Curitiba no Paraná. Filho de produtores rurais, minha vida até os 14 anos foi a roça. Ainda moro em um bairro rural. Até meados dos anos  2000, nossas TVs aqui em casa eram em preto e branco e eu só fui ter internet em casa no ano de 2017, depois de me formar na faculdade e conseguir uma bolsa de mestrado.

Um menininho quieto, tímido e meio solitário… As minhas primeiras memórias escolares já são recheadas de cobrança por masculinidade ou acusações de que eu não a tinha: “Boiola!”, “Viadinho!”.Tudo isso fazia com que eu me aproximasse mais das meninas que não me julgavam dessa forma. Bem, era um prato cheio para os meninos virem pra cima: “Menininha!” "Menininha!".

Você também percebeu como desde pequenos, nós homens, somos ensinados a odiar as mulheres e a feminilidade? Esses garotos usavam a feminilidade como xingamento, sabendo que isso tinha potencial para incomodar um outro garoto (eu), que ficaria bravo por não querer ocupar um lugar feminino ou que se parecesse com isso.

No artigo “Contribuições dos estudos de gênero às investigações que enfocam a masculinidade”, a pesquisadora Amanda Oliveira Rabelo (2010) vai nos dizer que, dentro dessa lógica de cobranças de virilidade até na voz, ser homem:

“Está em torno de não ser feminino, não ser homossexual, não ser dócil, não ser efeminado na aparência física ou nas maneiras”

Daniel Wezer-Lang (2001) pensando nessa construção do masculino, também vai concordar que essa masculinidade sob pressão é construída para:

“Rechaçar tudo o que é associado ao feminino, sob pena de ser também assimilado a uma mulher e ser ( mal) tratado como tal.”

E como eu não tô sozinho nessa, o pesquisador de masculinidades, Michael Kimmell (1998), pensando a produção dessa masculinidade imposta como ideal, vai nos fazer refletir que:

“Dois dos elementos constitutivos da construção social das masculinidades são o sexismo e a homofobia.”

O que isso quer dizer?

Em miúdos… Toda essa performance cobrada de nós homens, de corpo, voz e comportamento, é para que não sejamos comparados e confundidos com mulheres e homossexuais. Já que esses dois lugares, o feminino e o homossexual, são vistos ainda, por muita gente, como lugares inferiores.

Na roça, na escola, no aplicativo de relacionamento…

A masculinidade da roça é vista dentro desse estereótipo de homem forte, rústico, que levanta qualquer peso, enfrenta qualquer animal, aguenta qualquer dor e, geralmente, tem baixa escolaridade. Eu, magricelo, quieto, sem jeito pra nenhum esporte, não aguentava carregar nenhum peso, gostava de andar com as meninas e me dedicava aos estudos… Viado, Bichinha, Boiola. Anos e anos ouvindo isso.

Para piorar a minha situação, eu ainda gostava de estudar e era visto pelos “meninos do fundão” como o CDF. Mais um prato cheio para que eu não tivesse paz. Me recordo de sentar sempre nas primeiras carteiras. E colado com a mesa dos professores, de preferência. Por quê? Era uma forma de estar protegido. Os meninos teriam menos coragem de me xingar ou me provocar. A gente vai achando espaços de sobrevivência, vai sendo obrigado a achar…

As consequências das pressões, das fobias, das violências:

Vivi uma tentativa de enforcamento por um garoto que era super homofóbico e fazia extremo bullying comigo em uma aula de Educação Física, também me lembro das várias cusparadas quando eu descia do ônibus e os meninos corriam pra janela gritando: V-I-A-D-O! Sem contar, que eu também desviava caminhos na cidade ou dentro da escola pra não encontrar o grupo de meninos que iam me “zoar”. 

Se incomodavam com a minha voz, com a minha roupa, com a forma que eu cruzava as pernas, com o “jeitinho”, com a “desmunhecada da mão”,com os gritinhos, com a voz…Tudo em mim incomodava muita gente, principalmente os meninos. Tudo em mim era motivo de correção. Eu não estava “sendo homem” direito.

Isso me lembra o caso do pequeno Alex em 2014, no Rio de Janeiro. Ele tinha 8 anos e foi espancado até a morte pelo próprio pai por que ele gostava de lavar louça e de dança do ventre. Em confissão, esse pai assume que dava surras corretivas em Alex para que ele aprendesse a “andar como homem”.

Quando eu cresci, lá pelos meus 20 e poucos anos, e já tinha entendido a minha sexualidade, comecei a usar aplicativos de relacionamento. Um dia me deparei com algo que acontece muito entre homens gays: é comum que um rapaz que esteja interessado em você peça pra ouvir a sua voz por áudio de whatsapp antes de um primeiro encontro. Sabe por que?

Para tentar descobrir se você é um cara gay afeminado. Alguns caras vão sumir depois desse áudio, caso percebam que a sua voz não é suficientemente masculina, de acordo com as expectativas deles. É, confesso que já me peguei reouvindo áudios com medo de ser rejeitado ou engrossando mais a voz na hora de gravar. Pura insegurança. A minha infância me lembrava sempre o que os meninos faziam com garotos afeminados.

A gente vai se adequando para sobreviver…

Ainda que a gente saiba que existem muitas masculinidades e que existem muitas formas de ser homem, todas elas, de alguma forma, são pressionadas a caminhar na direção de se tornar o “homem de verdade”, da voz grave, firme, rústica, viril…

VOZ É PODER!

E quem tem falado isso são os estudos e os fonoaudiólogos.

Mara Behlau, fonoaudióloga e professora de comunicação, destaca:

“As vozes mais graves são associadas ao sucesso. Nas organizações, elas provocam uma percepção de maior competência, persuasão, confiança e segurança. Não é incomum se deparar com profissionais mulheres que não se sentem “levadas a sério” devido a sua voz.”

Na reportagem “Mulheres ainda precisam “falar grosso” para serem ouvidas nas empresas”, da Revista Época Negócios, encontramos um estudo sobre voz e sucesso:

“Essa relação entre voz grave e sucesso já foi divulgada em um estudo realizado entre homens pela Fuqua School of Business, a escola de negócios da Duke University, em 2013. A pesquisa feita com 792 líderes de empresas mostrou que os executivos de vozes mais graves tinham salários mais altos, bônus mais “gordos” e maior estabilidade no cargo. Também trabalhavam nas maiores empresas.”

Mas se a voz é poder, que vozes podem falar? Será que a voz é apenas um elemento fisiológico ou também cultural? Dentro de uma estrutura desigual de gênero, classe e raça, determinadas pessoas têm maior poder de fala e de voz do que outras. São menos interrompidas, mais respeitadas… 

A voz do homem pobre tem o mesmo poder da voz do bilionário? A voz do homem negro tem a mesma credibilidade do que a voz do homem branco? A voz de um homem gay afeminado é respeitada da mesma maneira que a voz de um homem heterossexual? A voz de uma mulher é respeitada da mesma forma que a voz de um homem?

A minha capacidade profissional pode ser medida pela minha voz?

É claro que não! Mas muitas pessoas acabam nos julgando por isso. Aqui nós podemos pensar no exemplo do Anderson Silva, campeão de UFC, bem sucedido e com uma voz considerada “feminina”.

Revista Veja -  Anthony Geathers/Getty Images 

Entretanto, uma fala dele no programa “Mais Você” da Rede Globo me chamou a atenção:

“Nunca tive problemas profissionais em relação a minha voz. É um pouco difícil mostrar liderança se você tem a voz baixa, mas tem a postura e vários outros fatores que ajudam a voz”

É interessante pensarmos como as nossas masculinidades são construídas em um jogo de compensação: se minha voz é fina, vou compensar com uma “postura de homem”, “atitude de homem”, para que isso que é visto como “feminino” em mim seja deixado de lado. Homens gays, por exemplo, podem tentar compensar a sua masculinidade obtendo sucesso acadêmico e destaque profissional, para que sua sexualidade saia de foco.

Será que a voz de Anderson Silva pesou, em alguma medida até inconsciente, na escolha de sua profissão? A luta. Uma profissão vista como viril, máscula e de “macho”, para compensar sua voz considerada “feminina”?

Essa cobrança de “falar que nem homem” vai nos afetar de diversas formas: 

  • Não sermos promovidos no trabalho

  • Não termos nossas ideias consideradas no trabalho e na faculdade

  • Alto risco de homofobia e transfobia

  • A desqualificação do nosso lugar como pai por não termos a suposta “voz de autoridade”.

Imagina como deve ser para um homem que é professor em escolas, mas tem uma voz mais fina? Muitas vezes será desrespeitado por alunos, pais, colegas e diretores. Tudo por uma expectativa construída de que homens tem que falar de certa maneira, por que se não são menos homens.

As mulheres também são afetadas…

A fonoaudióloga Mara Behlau declarou à Revista Época que as mulheres têm buscado treinamentos de voz para serem mais respeitadas e terem suas ideias, sugestões e projetos acatados dentro das empresas:

“A ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, que tinha um tom mais agudo (combinado a um sotaque que destoava da alta classe do país), passou por treinamento antes de se tornar a figura de comando que fez história. Da mesma forma, muitas profissionais estão assumindo um tom mais grave para captar a atenção de seus interlocutores.” 

Ela conta que uma jovem desabafou para ela relatando que havia feito todo o trabalho para um projeto, mas na última hora, não foi ela que fez a apresentação, mas sim um homem, porque alegaram que ela tinha “voz de criança”.

É muito comum também que vozes femininas recebam mais avaliações negativas em podcasts, conferências e aulas gravadas. Não apenas por, geralmente, serem mais agudas. Mas pela espera dos ouvintes por um tom materno e dócil.

“Ela soa autossuficiente demais!”,"Ela não tem aquela voz acolhedora!”, críticas expostas no texto “Voz de homem, por favor!" da médica e pesquisadora Dr.Leticia Kawano Dourado.

Por onde podemos começar a mudar?

Podemos começar nos conscientizando que o seu tipo de voz não tem conexão com a sua orientação sexual e que mesmo que tivesse, isso não deveria ser lido como algo negativo. A capacidade de alguém não está no seu tipo de voz, mas na sua dedicação, trajetória, experiência profissional e habilidades técnicas adequadas ao trabalho ou a qualquer atividade que essa pessoa deseja desenvolver.

Somos diversos! Nossos corpos são diversos, nossas sexualidades são diversas, nossas profissões são diversas e nossas vozes são diversas. Homens com vozes finas, mulheres com vozes graves e um mundo plural para além disso.

Se você presenciar alguma pessoa sendo discriminada ou diminuída no seu trabalho por ser tímido, por ter uma voz  diferente ou aguda, intervenha, converse com seus colegas e comunique os responsáveis pelo seu setor. Romper com essas construções que também nos violentam, marcam a nossa infância, adolescência e a própria vida adulta faz parte da construção de masculinidades responsáveis.


publicado em 14 de Outubro de 2022, 19:00
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Andrio Robert

Mestre e doutorando em Educação no PPGE- UFPR. É pesquisador de corpo, gênero e masculinidades. Suas investigações estão inseridas na linha LICORES - Linguagem, Corpo e Estética na Educação, no grupo de pesquisa Labelit - Laboratório de Estudos em Educação, Linguagem e Teatralidades (UFPR/CNPq) e na Diálogos - Rede Internacional de Pesquisa.


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