_Sorte

A gente precisa de um pouco.

Eu não tinha mais internet no celular. O plano que tenho contratado na operadora permite, além dos quinhentos mega estimados em contrato, que eu adquira mais três pacotes de duzentos mega pela exorbitante quantia de seis reais com noventa e nove centavos. Vem tudo junto na conta, e o preço que era para ser um vem sempre quatorze reais mais caro, pois não modulo a frequência e a quantidade que acesso os dados do meu celular. Mas deveria. Afinal, nesse momento em que não tinha mais internet no celular, eu não tinha como contatar a pessoa com a qual ia me encontrar. Ligar era demasiado exagero, afinal, chegara mais cedo ao ponto de encontro e o encontrara fechado. Ela, a pessoa, quando marcou às nove da manhã deveria saber que o café abriria às nove. Não contava ela com a minha ansiedade, tantas vezes confundida com pontualidade e comprometimento, pois chego não cinco minutos antes, mas cinquenta. Carrego sempre o livro que leio para gastar melhor esse tempo. Foi o caso. Todavia, fechado o estabelecimento, voltei ao carro, peguei o celular e olhei em volta. Onde tem wi-fi por aqui? Liguei o veículo disposto a achar alguma cafeteria aberta, menos pelo café do que pela internet.

Subi uma rua, reduzi uma marcha, converti à direita, avistei um lugar que serve café, mas ali sabia não dispor de internet. Segui. Desci uma rua e fui em direção à zona boêmia da cidade. Lá as ruas estavam mais limpas do que o normal, devia de ser pelo dia da semana, terça-feira. Terça-feira, oito e quinze já. Ora, mas por que mudar o lugar de encontro, avaliou, de repente, meu bom senso. Por que ficaria parado eu lá, aguardando ser o próximo assaltado pelo próximo assaltante, respondi prontamente, sempre olhando em direção às calçadas, procurando o estabelecimento aberto já cedo que me cederia a tão procurada internet para avisar da mudança do lugar de encontro. Quando o relógio marcou oito e vinte e eu ainda não tinha encontrado um lugar, pensei em voltar para o primeiro ponto e esperar lá, mesmo porque esperar meia hora (aqui já considerados os outros dez minutos que levaria para voltar) é melhor do que esperar a hora inteira, e também porque transitar para sempre ia apenas levar o ponteiro de gasolina em direção ao zero.

Encontrei o lugar. Na frente, encontrei vaga para deixar o carro. A sorte estava mudando. Entrei. Era o único cliente. Acho que eles haviam acabado de abrir. A atendente não estava de bom humor e deixou isso claro enquanto me alcançava o cardápio, o qual recusei avisando que não havia necessidade, pois já sabia o que queria: um expresso duplo e a senha do wi-fi. “Café1234”, ela respondeu já caminhando em direção ao maquinário de café. Conectei o celular, mandei a mensagem para a pessoa com quem iria me encontrar. Me senti aliviado por ter conseguido. Agora, restava esperar a resposta. Procurei na mochila o livro que lia por esses dias. Abri o livro, e antes de afastar o celular coloquei ele no modo vibratório. O cheiro do café me atingiu em cheio as narinas, e não é pouco o tanto que gosto do cheiro de café. É quase o mesmo tanto que aprecio o cheiro de gasolina que emana dos postos. Lembrei que tinha pensado nisso ao abastecer o carro de manhã e isso me lembrou de procurar o cartão de débito que havia utilizado para encher o tanque, o que, por sua vez, me lembrou de que não deveria ter sobrado muito dinheiro na conta. Afastei o livro e puxei de volta o celular. Abri o aplicativo do banco e consultei o saldo. Três reais. Eu tinha três reais no banco e não precisava perguntar quanto custava o café para saber que era no mínimo o dobro disso. Inventou ainda de pedir o expresso duplo, advertiu o bom senso, o que eu não encontrei respostas para dar, pois já começava a correr uma linha de suor da minha testa.

O café a essa altura já estava posto em minha frente e eu sequer percebi a atendente o trazendo. Larguei o celular, puxei o livro de volta. Pensei em como agir, olhei por cima do ombro em direção a porta, a calçada estava livre e o carro estava bem em frente. Cogitei fugir sem pagar. Tudo tem uma primeira vez na vida, pensei. Então era esse o tipo de novas experiências a que te referias nas resoluções de ano novo, falou, outra vez, o bom senso. Afastei esse pensamento. Daria errado. Eles deveriam ter câmeras ali. Decidi nem olhar para cima e para os cantos, vai que não houvessem câmeras e eu decidisse dar curso a essa ação imoral. Olhei para um mural posto ao lado do balcão. Café compartilhado, dizia. Aquelas pessoas que deixam café de graça para outras pessoas e colocam um bilhete num mural. A ideia havia se espalhado dois anos atrás com um vídeo compartilhado em demasia no Facebook por um café norte-americano que tomara essa atitude e fornecia para um ou outro mendigo da cidade um café pago por outra pessoa. Por aqui, os mendigos nem entram em lugares como esse. Não os deixam entrar. E, da rua, eles nem enxergam que existem esses bilhetes. Enquanto pensava nisso, meus olhos iam e voltavam em direção ao livro, o que fez com que eu lesse a mesma frase incontáveis vezes. Decidi fechar o livro e solucionar isso de uma vez. Tomaria meu café, essa foi a primeira decisão.

A segunda decisão estava quase se formando. Seria me dirigir ao balcão e avisar que, infelizmente, não teria como pagar. Que havia consultado o saldo pelo aplicativo do banco no meu celular e estava com menos dinheiro do que custaria o café. Talvez isso fosse fazer com que a atendente desconfiasse. Melhor seria deixar ela tentar debitar o valor da minha conta e receber o aviso de saldo insuficiente no visor da máquina de cartões. Não, melhor não. Talvez seja o caso de eu oferecer para pagar os três reais que tenho e prometer voltar outra hora. Mas ela estava com a cara tão fechada, vítima de um mal humor matutino, que me forçava a não querer arriscar. Mania essa nós temos de não querer incomodar mais quem já parece tão incomodado. O que, no fim das contas, não faz diferença nenhuma. Procurei, portanto, outra solução ao meu redor. A mochila. Sempre atiro moedas para dentro dela sem mais nem menos. Talvez houvesse ali até mais do que custa o café. Revirei a mochila com nervosismo. Cinquenta centavos, cinco centavos, um real, dois reais, surgiram, exatamente nessa ordem. Dei cabo ao café num gole apressado. Já não queria mais estar naquele local de aflição. Me dirigi ao balcão com o cartão e o dinheiro encontrado.

Oi, quanto é o café?

Seis e cinquenta, ela disse.

Feito, eu pensei, mas falei Vou precisar passar três reais aqui no cartão, pois consultei e vi que não tenho mais do que isso e o resto eu tenho aqui, em dinheiro.

Ela nem respondeu.

Peguei minhas coisas e fui saindo quando me dei conta que havia esquecido do encontro. No mesmo instante o celular vibrou no meu bolso. Já eram cinco para as nove, deveria ser uma mensagem dela avisando a iminente chegada, mas não, era apenas avisando que não conseguiria chegar a tempo, que era melhor deixar para outro dia. Nisso, já estava na calçada e, uma vez na rua, eu não tinha mais internet no celular.

Obs.: este artigo foi originalmente publicado no Medium do autor.


publicado em 08 de Fevereiro de 2018, 00:00
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Sergio Trentini

Cursou psicologia, administração e jornalismo. Não terminou nenhuma das três. A última já passou da metade, e essa, jura que vai acabar. Assim como todas as histórias que começa a escrever. Escreve lá no Medium


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