Quem reza pelas travestis da quebrada?

Quando a periferia conta sua própria história.

 

Afinal, quem reza pelas travestis da quebrada?

Nosso Brasil brasileiro é o país que mais mata pessoas trans no mundo. 90% delas estão na prostituição e a expectativa de vida gira em torno dos 30 anos. Pra combinar com os números e estatísticas, a procura por emprego é marcada por um banho de julgamentos, o que só deixa a situação mais problemática. 

A condição de marginalização tá impregnada em toda a sigla LGBTT de diferentes formas, e se torna ainda pior quando o assunto é levado para as periferias. O vídeo com o poema "Oração principal", declamado por uma travesti, faz parte de uma série documental que vai abrir espaço para discutir essa situação toda. 

O Grajaú, extremo sul de São Paulo e terra do ex-volante corinthiano Ralf e do Criolo, já foi considerado o bairro mais perigoso do Brasil. E é de lá que vem a Nayara Mendl, idealizadora da série Babado Periférico; conversei com ela pra entender melhor o que tá acontecendo nos lugares onde a grande mídia e os portais alternativos de "cultura LGBT" quase não chegam. 

Por que focar na periferia?

"O Babado Periférico é parte da tentativa de diminuir a contradição entre a alta concentração de LGBTs nas periferias de São Paulo e o pouco que se sabe sobre o assunto."

O movimento LGBTT nasceu nos anos 70 e se construiu a partir de um processo fragmentado. Como a gente tá cansado de saber, ainda hoje ele enfrenta várias barras, e quando tá na periferia a pedra no sapato é muito maior. Lá estão a maior parte das lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis, mas ainda falta dar rosto a essas pessoas pra entender o que eles pensam e passam. ​

Gilmara Cunha é militante do complexo da maré.

​Nayara viu na produção audiovisual uma chance de trazer reflexão pra quem não lembra que essas pessoas existem e resistem em muitos espaços (e de muitas formas). _

"Produzir esse material é transgredir tudo que a mídia fala da gente, tudo que é do imaginário comum do que é uma bicha, uma trans ou uma sapatão da periferia."

Colocar em cena o rosto e a voz desses LGBTs é uma maneira de tornar as formas de opressão palpáveis, além de ser uma ferramenta para tentar evitar que histórias trágicas continuem se repetindo, como o ocorrido com Luana no início desse ano.

Existe preconceito dentro do próprio movimento?

"O que mais percebemos no processo de gravação foi que o próprio movimento LGBT julga aqueles que não são 'limpinhos, branquinhos e padronizados', e muitas vezes se esquecem da periferia na hora da construção das suas pautas."

Para a Nayara, os movimentos de ocupação dos espaços na periferia são lindos de se ver, porque reivindicam o lugar em que essas pessoas nasceram, cresceram e se formaram. Mas apesar de estarem em crescimento, eles ainda não conseguem suporte pra se conectarem e crescerem unidos.

A partir disso, uma das coisas que mais ocorrem é o deslocamento da população LGBTT para o centro, principalmente nos momentos em que eles querem se reunir ou se divertir. Só que mesmo nesses espaços centrais rola segregação:

"Vemos o recorte classe e raça muito latente quando comparamos o Largo do Arouche, que é como um gueto dentro do centro, e as baladas da Vila Madalena. As roupas, as pessoas, os preços e o status são outros".

Quebrada falando de quebrada

Uma das motivações dessa série documental foi o processo pessoal de busca da Nayara. Ela passou por momentos dolorosos durante a vida, no sentido de entender seu lugar como LGBT dentro da sociedade, dentro da militância e dentro dos espaços nos quais ela circulava. Ou seja, pra além do lance transformador do projeto, há outro fator importante: a própria diretora, sendo lésbica e periférica, também pertence ao universo abordado na série.

"É isso que o Babado Periférico é. A periferia falando da nossa realidade e tomando protagonismo da narrativa, com o recorte feito por nós."

Esse é um ponto essencial nessa história toda. O audiovisual é um meio elitizado e tomado por homens. A Nayara não pertence a nenhuma dessas roupagens, e essa configuração faz com que o "vamos dar voz ", mote de muitas iniciativas a favor das "minorias", se transforme em "vou usar minha própria voz pra contar a minha própria história".

A autonomia narrativa e a força presentes nesse projeto são de uma importância escandalosa, porque fazem o que pouco se vê por aí: colocar em posição de protagonismo pessoas que nunca ocuparam esse lugar.

A trans e o gay contando suas histórias.

O bi, a lésbica e a travesti contando suas histórias.

A periferia sendo contada pela própria periferia.

 

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A série Babado Periférico vai ser lançada no dia 12 de novembro, no Centro Cultural do Grajaú, 15h. Quem quiser saber mais pode acompanhar as informações pela página do Facebook.


publicado em 13 de Outubro de 2016, 22:40
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Carol Rocha

Leonina não praticante. Produziu a série Nossa História Invisível , é uma das idealizadoras do Papo de Mulher, coleciona memes no Facebook e horas perdidas no Instagram. Faz parte da equipe de conteúdo do Papo de Homem, odeia azeitona e adora lugares com sinuca (mesmo sem saber jogar).


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