A pluralidade de Pedro e seu alter ego, Deena Love

Mais do que interessante, me parece motivador deparar-se com o novo, ainda mais se você é daqueles que busca ter a clareza e o devido respeito por um mundo, definitivamente, plural. Somos gays, somos lésbicas, e, para que não haja dúvidas e graça vital, podemos ser o que quisermos. "A Deena é um sopro retrô num universo tecnológico moderno", resumiu Pedro Novas Figueiredo que, mais recentemente, ficou nacionalmente conhecido como a drag queen -- transformista ou personagem -- Deena Love, após participar de um reality show musical na TV.

"A Deena é a persona que o Pedro criou para que ele pudesse despejar todas as potencialidades artísticas dele", completa ao dizer que a persona nasceu entre 2008 e 2009, durante apresentações em cruzeiros em que trabalhava como crooner.

Pedro, segundo Deena (que é o próprio travestido de mulher), é um cara tranquilo, sossegado, que gosta de ouvir música ao limpar a casa. Na manhã que antecedeu a conversa da última quinta-feira (4), ele conta que estava ouvindo Dalva de Oliveira durante seus afazeres: "Eu gosto dessa onda mesmo, eu gosto de jazz, desses estandartes". O gosto musical também embala o estilo de ser, se vestir e se apresentar de Deena, que se aparece como uma mulher dos anos 40 e 50, com alicerces referenciais fixados em Carmen Miranda, Dalva de Oliveira, Marlene, Ângela Maria, da Era do Rádio, e também internacionais, como Judy Garland, Amália Rodrigues.

Deixa claro que curte também cantores, como Nat King Cole e, para citar um mais contemporâneo, Michael Buble."Adoro, acho incrível, mas meu foco foi sempre as cantoras, sempre gostei mais de voz feminina, sempre me identifiquei mais com elas", explica.

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Não por menos, o nome Deena Love surge de uma homenagem que Pedro quis fazer à cantora e apresentadora americana Dinah Shore. Quando criança, o hoje transformista, pronunciava seu nome na forma como é grafada e não como se pronuncia (Diana).

Gay assumido, o artista comenta que, embora Deena Love seja sua faceta mais conhecida do grande público, ela existe mesmo no palco. Não por nada, segundo a (o) própria (o), apenas porque Pedro gosta de ser Pedro no cotiano e viver a Deena sob as luzes do palco. A dupla de porta-voz única garante que se adora. "Na verdade, a minha intensão maior, como artista, é resgatar uma estética musical. Se eu gravar um disco com músicas próprias, minhas músicas terão essa estética, ainda que sejam inéditas. Quero resgatar essa essência da obra-prima com poucos recursos do passado", resume sua própria vontade.

Deena faz questão de ir além da música durante a conversa, impulsionada também por um interlocutor -- este que vos escreve -- curioso por descobrir como enxergam o mundo esses personagens da vida real, travestidos de, por que não, de vida real mesmo. Do auge do seu salto, que ele (a) garante não ser muito habilidoso (a) até hoje, Deena acredita que o mundo, estranhamente encaretou-se nas últimas décadas. E não difícil concordar com a afirmação se, usando a explanação da própria Deena, pensarmos que o Brasil já teve, da década de 70 para cá, figuras como os Dzi Croquetes, Ney Matogrosso, Rogéria e tantos outros.

Ainda que com uma visão e vivência tão plural e, agora, com o auge de visibilidade de sua carreira, Deena Love rechaça ser militante, mesmo com ciência do poder que seu trabalho pode ter. "Eu acho interessante como a Deena é uma militante sem ser, porque ela consegue entrar na casa das pessoas e mudar pensamentos", comenta ao dizer que ser uma drag queen já é uma bandeira natural.

Tão curioso é o personagem que, ao invés de "me presentear", produzindo uma crônica, optei por compartilhar o papo, bastante agradável, que tive com a Deena, iniciado e permeado por música e arte, mas recheado generosamente por temas do dia a dia de um universo tão diverso, ainda pouco explorado e compreendido, dada sua imensidão:

Dá para dizer que é difícil se transformar para cantar no Brasil?

Eu acho que barreira tem para tudo, e também tem caminho para tudo. A gente tem que se focar em quem abre caminho para gente, e não para quem fecha. Se eu passar minha vida olhando para quem tem preconceito e é intolerante, eu não saio de casa.

Você pode ser magro, gordo, bonito, feio, alto, baixo, gay, hétero, cristão, ateu, enfim, qualquer coisa que você seja, você tem portas abertas e portas fechadas. Você tem que se direcionar para a porta aberta e, por isso, eu prefiro sempre elogiar quem me dá carinho do que ficar batendo boca com quem me critica.

O mais importante é dar amor a quem nos dá amor, do que ficar num debate se eu sou drag... vou continuar sendo drag, obrigado.

O Pedro é cantor. A voz da Deena chega a ser diferente da dele?

Não, nem cantando. Meu trabalho principal é como cantor. Eu me proponho a cantar. Eu estudei canto, então eu quero preservar minha essência de cantor. É claro que, por eu ser um transformistas, acabo envolvendo canto com trabalho teatral. Isso é inevitável e visível, mas o meu foco principal é a voz. Então não vejo motivos de modificar minha voz e tentar fazer um timbre feminino.

Eu canto aquilo que acho que deve ser cantado. Eu já tenho uma voz mais aguda, meu timbre é um timbre andrógino, digamos assim.

Você canta desde sempre então?

Profissionalmente desde os 16, mas a minha família é toda musical. Meu pai, meus tios, meu avô eram músicos. Então minha vida toda foi permeada por música.

Conte um pouco da primeira experiência de cantar travestido. Mais do que a data, qual foi a sensação?

Na verdade, a primeira vez que eu me montei como drag foi em um navio.

Eu era cantor de cruzeiro e, em um determinado momento, não lembro exatamente se 2008 ou 2009, mas sei que foi numa temporada no Caribe. Na época tinha uma atividade de animação que era os homens se vestirem de mulher e vice-versa. E em um desses dias, eu me vesti de Amy Winehouse e cantei com a banda algumas música dela. Foi um sucesso, muito legal. Mas não tinha o nome Deena ainda.

Não tinha grandes pretensões de ser uma drag queen efetivamente nesse dia, então?

Mais ou menos. Quando eu era pequena, eu tive muito as referências de filmes dos anos 90, como Para Wong Foo, Priscila (A Rainha do Deserto), Gaiola das Loucas. Eu sempre me encantei por essa temática, mas não tive oportunidade de trabalhar como transformista nunca, por questões da vida. Eu era cantor, não tive a oportunidade. E também eu comecei a frequentar a noite LGBT meio tarde.

Não foi uma coisa que logo que eu me descobri, eu fui. Porque a gente já sabe que é gay desde que nasce, mas eu não comecei de cara. Então não tive a oportunidade de me montar nunca. Depois desse dia do navio, eu quis levar a brincadeira a sério.

E como foram essas primeiras experiências já com a Deena concebida?



Ah, engraçado, eu não sabia me maquiar, não sabia andar de salto. Até hoje o salto é uma tortura para mim, dependendo do tamanho e do formato. (risos)

No show de domingo (show que ela fez no final de semana seguinte) você vai usar que tipo de salto?


Eu vou usar um salto de acordo com a época. Como a Deena é uma cantora dos anos 40, optei por um modelo condizente ao personagem.

Você continua cantando como Pedro, existem projetos nesse sentido?


Não, eu não vejo nenhum problema em cantar como Pedro, mas acho que agora seria jogar fora uma imagem que foi construída, tão bonita, que passou na TV etc. Seria jogar isso pelo ralo. Não vejo, agora, a necessidade de deixar a Deena de lado.

Até poderia fazer um trabalho paralelo, não como cantor, mas agora eu quero a Deena. Em um trabalho de ator, de repente, com uma outra direção, eu poderia levar o Pedro, mas eu não quero que um tire o lugar do outro.

Como você idealizou e montou a Deena? Ela continua em formação?


O fato de eu ter participado de um programa de televisão com tanta visibilidade me fez pensar em várias maneiras de trabalhar com a Deena. Eu entrei ali com uma linha de pensamento, mas agora o leque se abriu, eu tenho outras possibilidades. Não gostaria de me perder nessa gama de possibilidades.

O que eu posso fazer é uma fusão de valores musicais, mas abandonar toda minha estética, nunca. Afinal, o que me move a ser artista é essa estética retrô, que eu sempre fui apaixonado.

Depois da sua participação no The Voice Brasil, o que mudou? Como você acredita que os diversos gêneros podem tomar o espaço público? Você pode contribuir para isso?


Primeiro que eu acho que de uns anos para cá, a "caretice" voltou no Brasil, de uma forma nunca antes vista na nossa história. Nunca vi um país se "encaretar" tão rápido, como a gente se "encaretou" de novo. Eu acho isso impressionante.

Em 70, tínhamos os Dzi Croquetes, tinha Rogéria, Jane de Castro, Ney Matogrosso. Quer dizer, gente linda, moderna, fazendo um trabalho maravilho e, de repente, "encaretou" de uma forma assim... e as pessoas falam muito que a "Deena quebrou um tabu". Eu acho que seria uma falta de respeito enorme da minha parte esquecer todas essas pessoas e me intitular como um quebrador de tabu. No caso, eu só posso me considerar assim porque o mundo "reencaretou".

Podemos dizer que você é um quebrador de tabu contemporâneo então?


Isso, por causa dessa "neocaretice". Quer dizer, qual é o real tabu de um transformista? Eu não sei, faz tantos anos que existem shows de transformistas pelo mundo.

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A sua opção -- que não é opção, é gosto -- por uma drag dos anos 40, anos 50...


Foi de uma paixão que eu tenho pela música. Meu avô, principalmente, era uma pessoa muito musical. Eu vivi muito com meus pais e meus avós. Até a morte do meu avô esse ano, em maio, ele tocava violão clássico, tocava bossa nova, era um grande músico. Então, eu sempre fui apaixonado por essa estética musical antiga.

Sempre me admirou muito a qualidade das músicas antigas. Embora a qualidade de gravação fosse muito precária, a qualidade artística era muito forte. Existia uma contraposição entre a qualidade de gravação, que não era tão boa, mas a qualidade artística fantástica. Naquela época não tinha como errar, afinal gravar um disco de cobre era muito caro.

Quer dizer, ou você era bom ou você era bom.

Pois é, ficam os que são bons, né?


Sim, tanto que nas referências que nós temos de músicos antigos, todos são bons. Ainda que você não goste de uma música ou outra, a voz era perfeita, afinada, com potência, com brilho, e isso faz falta. Eu acho que a gente, aqui no Brasil, se americanizou muito.

Não tenho nada contra os Estados Unidos, adoro. Falar mal dos americanos seria falar mal de Billie Holiday, aquela cantora maravilhosa. Mas acho que a gente pegou uns cacoetes do canto americano e impregnou na nossa música.

O estilo brasileiro tem um potencial muito grande...


Como eu fui crooner, eu aprendi que você tem que respeitar o estilo. Você vai cantar um rock, seja um roqueiro. Vai cantar um samba, então seja um sambista. Eu acho que falta isso um pouco hoje.

Você falou de um certo "encaretamento", você já sofreu algum tipo de preconceito?


Não. Mas também não sou uma pessoa que fica na internet buscando as críticas. Eu acho que vai ter gente crítica mesmo, tem gente que é careta, tem gente que não é careta e não gosta de mim, simplesmente porque não gosta do meu repertório.

Eu não posso achar que só porque não gosta de mim é porque tem preconceito, tem gente que não gosta da estética e pronto. Mas eu também não fico procurando "pelo em ovo", procuro ver quem me ama. Quem não gosta de mim, fazer o quê?

O balanço dessa sua exposição na TV então é totalmente positivo?


O The Voice é um programa, ao meu ver, pop. E eu consegui entrar em um programa dessa magnitude, com essa audiência enorme, com um repertório que vai na contramão, totalmente o contrário...

Como você se descobriu diferente?


Gay, você diz?

Como você se sentir à vontade para responder, afinal estou de frente com uma singularidade aqui. Quero saber como chegou a esse resultado.


Existe uma multiplicidade humana que tem que ser respeitada. Por exemplo, a Vovó Mafalda, ao meu ver, é um transformista, aquele ator lindo e maravilhoso, e era heterossexual. No meu caso, o fato de eu ser homossexual e ter uma paixão pelo universo feminino muito grande, fez com que a Deena fosse o que ela é hoje.

Eu só poderia ser o que eu sou, em função, também, de ser gay. Se fosse um heterossexual, que não tivesse nenhum contato com o mundo feminino, talvez eu não tivesse os elementos necessários para formar a Deena Love.

Que elementos você traz da sua vida pessoal, desde a infância, desse universo feminino?




São muitas lembranças. O cheiro da minha mãe, o perfume que ela usava. Não podemos dizer que todo mundo é igual, mas eu nunca conheci um gay que não fosse de nascença. Pode ser que exista, mas eu não conheço.

Eu também não sou, já nasci gay e tive essa percepção na primeira infância. E gay, que eu digo, não só no sentido sexual da questão, mas ter essa essência mais feminina, não nos trejeitos, mas no amor ao universo feminino...

E na percepção de mundo também, no lidar com as pessoas...


Isso, é uma característica que é comum a 90% da população que se considera homossexual.

Quem é o seu público, Deena?


Com certeza, 90% do meu público é LGBT, mais "L" do que "G". Eu comecei em casa noturna para o público feminino.

Mas chegam a ter uma paixões lésbicas pela Deena?


Na verdade, a casa noturna feminina, geralmente, tem música ao vivo. A casa noturna para meninos é mais balada, mais música eletrônica. A casa onde estreei (o Farol Madalena, em São Paulo), era um lugar com música ao vivo, com músicos bons.

A mulher tem mais essa sensibilidade para música ao vivo do que o público gay masculino. É o que eu sinto. Em função disso, meu público maior sempre foi de meninas. E depois da exposição na TV, o leque se abriu. Agora tem de tudo, da criancinha ao vovôzinho.

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E o perfil de sua personagem pode ser assistido por todos, certo?


Eu costumo dizer que, embora a Deena seja uma bandeira gay, ainda que eu negue -- "ah, não quero e tal" -- não tem como, é uma drag queen, já é uma bandeira. Mas a minha bandeira principal sempre foi a arte, sempre foi a música. Eu acho interessante como a Deena é uma militante sem ser, porque ela consegue entrar na casa das pessoas e mudar pensamentos.

Eu recebi telefonemas de mães que estavam há anos sem falar com o filho que se assumiu gay, e ela voltou a falar com o filho. Então é uma vitória de militância. Existe o militante que é importantíssimo. Eu acho, por exemplo, o trabalho do Jean Wyllys fantástico, um cara que está há décadas lutando pela gente. E o meu, de uma certa forma, também é, com mais suavidade, mas é.

Mas, olha, ambos ficaram famosos ao participar de realities shows, pode realmente sair alguma coisa daí, hein...


É, já pensou? Vai que eu substituo a Dilma Rousseff, a Deena Rousseff (risos).

Você fala sobre buscar o que te faz bem e não o que faz mal, o que é o amor para a Deena?




O amor? Tão complexo isso. Para mim, o amor, primeiro, é a nossa principal busca na vida. Acho que definir amor é nossa busca. Porque a gente já tem vários conceitos do que é amor, formados pela TV, por Hollywood, pela rádio, por fotos, mas amor é aquilo que cala dentro do nosso coração. O meu amor é diferente seu.

Cantar é uma forma de você expor esse amor que tem dentro de você?


Com certeza. É a maior forma de amor que eu poderia ter.

Você acha que tem que "ser muito macho" para se assumir, se travestir, subir no palco?


Eu acho que tem que ser muito macho para usar salto! (risos) Eu não tenho ginga para andar de salto, de jeito nenhum, eu só podia ser uma cantora de rádio porque eu ando de salto como a minha vó, não rola aquele charme a la Gisele Büenchen.


publicado em 10 de Dezembro de 2014, 07:00
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Danilo Gonçalves

Um cara alegre e gosta de ser lembrado assim. Jornalista de formação, com um pé na publicidade, gosta de Novos Baianos, Doces Bárbaros e Beatles. Já gostou de Calypso e como todo gay que se preze, é fã da Beyonce.


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